domingo, 26 de dezembro de 2010

“Não sei porque eu tô tão feliz”


O Papai Noel da Coca-Cola não trouxe a felicidade (como vimos na minha crônica da semana passada sobre o suicida Assis Valente). Então, aproveito a áurea de ressaca do dia de hoje para falar sobre a felicidade, a partir da canção mais engraçada, mais melancólica e mais irônica sobre este tema. A música “Felicidade” [feliz achado do professor-compositor Luiz Tatit, gênio da palavra (cantada, escrita e falada)] é ideal (real) pra se ouvir em momentos de reflexão. Querido leitor ou leitora, não quero estragar os resquícios de sua festança natalina, só quero lhe convidar para rir comigo de nossa tragédia humana, nestes dias em que a cabeça gira entre o ano que se finda e o ano anunciado. Antes de continuar a leitura... vá lá no youtube, digite: “Luiz Tatit, Felicidade” (ou procure o lindo cd com esta faixa-título) e ouça com atenção, sem moderação, esta pérola patético-poética.

Pronto? Já fez o sugerido? Agora, podemos prosseguir na prosa. É provável que você esteja folheando o jornal, aí agora, na casa da sogra – ou do genro, ou do filho, ou do pai, ou na sua própria residência, ou de um amigo qualquer – neste dia de Falso Silva. Não importa. O que importa é que muitos devem se reunir com seu clã, no almoço deste domingo feliz pós-ceia. Torço para que esteja tudo certo por aí. Sem aquelas discussões bestas de família; sem farpas no ar; sem aquela hipocrisia comum de fim de ano; sem um presente indesejado de amigo-secreto; sem nenhum coma alcoólico e sem morte na estrada. Sem nenhum desses itens previsíveis, enquanto fenômenos sociais, nesse período. Votos de felicidade. Tomara que sua família seja a exceção para confirmar a regra. E, assim, enfim, tomara que aí ocorram, realmente, “boas” festas!

Mas, se porventura, apesar da “noite feliz”, no fim deste último domingo de 2010 (um ano nem tão nota 10 assim), bater uma melancolia (visto que fim de domingo é, normalmente, entristecedor)... lembre-se de outra canção (daquele sucesso na voz de Odair José):“Felicidade não existe/ O que existe na vida são momentos felizes”. É isso. Nietzsche completaria: “O homem que não consegue se colocar no limiar do instante, não saberá o que é a felicidade”. Devo, portanto, me contentar com o fato da utopia da felicidade plena ser uma besteira e saber que só se pode “estar” feliz. Acontece que, mesmo no “limiar do instante”, no meio da festa, pode bater o sentimento de solidão e a consciência da ausência. Na solidão, o eu - lírico da canção “Felicidade” faz ainda mais sentido. É o momento reflexivo sobre (se há) os motivos de fato para a tal da felicidade... “A busca de uma razão me deu dor de cabeça, acabou comigo”...

Esta música cômica e trágica do Tatit é uma composição perfeita a partir de uma situação de imperfeição, ironizada na contradição entre a poderosa letra, “feliz”, e a melodia triste, entoada pela vozinha frágil. Cada palavra, uma paulada. Cada rima, no lugar certo. Cada acorde, tijolo de uma atmosfera intrincada. Cada frase, sentido exato no todo do texto. Quem nunca esteve feliz para esconder, no fundo, uma infelicidade? Por mim, “Felicidade” poderia ser um hino nacional alternativo – desse país cansado de ser o “país do futuro”, cheio de gente “sem dinheiro, sem comida e feliz da vida” e com muitos frustrados pensando: “Não sei o que que foi que eu fiz pra merecer estar radiante de felicidade/ Mais fácil ver o que eu não fiz, fiz muito pouca coisa aqui pra minha idade/ Não me dediquei a nada/ Tudo eu fiz pela metade/ Por que então tanta felicidade?”

Que venha a felicidade, no ano que vem! E, de novo, “feliz ano novo”...


[ publicado no jornal Diário da Manhã ]

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